Publicado em 23/03/2013, às 17h20
Wagner Sarmento
wsarmento@jc.com.br
Amaro, um talento que a rua ganhou e o mundo perdeu
Bobby Fabisak/JC Imagem
Em silêncio, sozinho,
enquanto cascavilha o lixo alheio em busca da dignidade que a vida lhe
furtou, ele parece só mais um entre tantos que, todos os dias, passam
invisíveis aos nossos olhos – de dia ou de noite, puxando carroça nas
vielas dos subúrbios ou nas grandes avenidas. Mas Amaro Pedro da Silva
Santos, 41 anos de vida, 30 anos de rua, é diferente. Arremessado pelo
destino para um ofício estafante e ingrato, ele sorri. Compelido pelas
circunstâncias para o exército dos viciados em crack, ele ironiza. Amaro
é o catador de lixo que cita Geraldo Vandré ao falar de sua condição:
“Somos todos iguais, braços dados ou não”.
Ele não sai de casa quando vai
trabalhar. A rua já é morada. Não forra cama, não escova os dentes, às
vezes nem sinal de café da manhã. Levanta e vai sem rumo, a fome fazendo
sombra. Não tem esposa nem filhos. “Moro com os ratos nos buracos. A
realidade é essa, não vou mentir”, resume, com um sorriso desavergonhado
que não dá brecha à piedade.
Amaro é um esquecido pelo mundo. Roda a
cidade atrás de lixo e ninguém nota. Quando nota, sente medo. Ninguém o
olha como um igual. Ninguém imagina que, por detrás da armadura que o
preconceito julga como perigosa, está um homem articulado, inteligente,
politizado e apaixonado por música; um homem inofensivo, garante. “Sou
usuário de droga, mas não roubo. Trabalho como catador para manter meu
vício. Não faço mal a ninguém, só a mim mesmo”, diz. As mãos pretas, as
unhas quase invisíveis, a roupa imunda e o rosto suado embasam as
palavras.
O trabalho não tem hora e lugar. Começa
nos primeiros raios de sol e muitas vezes atravessa a noite. Amaro cata
papelão, latinha, plástico, tudo. Atua na região central do Recife. Foi
em Santo Amaro que a reportagem o achou. Não raro, porém, se pega
distante, na Zona Oeste, perto de Afogados, embalado pela esperança de
um dia produtivo.
Muitas vezes, é do lixo que ele tira o
alimento. O que o recifense que vive nas casas dispensa é o que sacia a
fome do recifense que sobrevive nas ruas: restos de feijão, arroz,
carne, bolacha, refrigerante. Na verdade, quase sempre, Amaro fica sem
poder comprar comida porque gasta o pouco que junta. “Não tenho dinheiro
para comprar o rango porque acabo gastando no crack. Aí tenho que tirar
comida do lixo”, confessa o catador, interrompido por uma tosse seca e
insistente, sinal de saúde frágil.
Não tenho dinheiro para comprar o rango porque acabo gastando no crack. Aí tenho que tirar comida do lixo confessa o catador, interrompido por uma tosse seca e insistente, sinal de saúde frágil
A dependência química é estigma que
persegue e incomoda. Amaro já tentou largar o vício, mas não demora a se
dar por vencido e mergulhar outra vez neste universo sombrio. Foi o
crack que o mandou para atrás das grades. Ficou lá por sete meses. “Sou
ex-presidiário. Fizeram covardia comigo. A polícia me botou como
traficante. É muita sacanagem. Quem já viu traficante puxar carroça e
viver de lixo?”, indaga. No Presídio Aníbal Bruno, no Sancho, Zona
Oeste, Amaro aprendeu a ler e escrever. Sem noção de tempo, num
calendário à parte em que todos os dias são iguais, não sabe quando
ficou livre.
Em três décadas de rua, só conheceu a
mão repressora do poder público. Ajuda, nunca viu a cor. “Até chegou uma
assistente social uma vez, mas quando eu falei que era ex-detento ela
sumiu. É uma discriminação. Jamais tive benefício. Esse pessoal ganha
bem e atende mal. Paguei um preço alto na cadeia, por uma coisa que eu
não devia. Mas infelizmente aconteceu e, se eu tiver que voltar para lá
por falar a verdade, vai ser uma delícia. Conheço todo mundo no
presídio, estudei e trabalhei lá dentro”, diz. “O ruim é que perdi todos
os meus direitos. Mas, pensando bem, eu nunca tive direitos”, ensina.
Amaro é artista da vida. Atua, finge e
debocha. Em São Paulo, onde viveu por seis anos, foi descoberto pelo
Teatro Popular União e Olho Vivo enquanto se virava na Praça da Sé.
Participou de algumas peças teatrais com outros mendigos, morou dois
anos numa casa de acolhimento, tinha teto e comida, mas a saudade do
Recife o fez voltar. Retornou à cidade natal, à rua, ao trabalho de
catador.
Amaro é artista da vida.
Participou de algumas peças teatrais com outros mendigos, morou dois
anos numa casa de acolhimento, tinha teto e comida
A necessidade engole o dom com o qual
Amaro assegura ter nascido: “Sou compositor”. A afirmação é seguida de
um riso franco e um reforço: “Sou mesmo. Tenho mais de 20 músicas”.
Algumas com viés político, outras que falam de amor.
A confirmação chega a reboque, ao entoar
uma composição que fez sobre o Rio Capibaribe. Um frevo que jamais foi
escrito, que desconhece partitura, que nunca entrou em estúdio, que
rádio nenhuma tocou. Uma letra em que o homem que nunca pisou em aula de
história resgata Maurício de Nassau. Uma canção que critica a poluição
do rio e a destruição do mangue. “Minha composição é uma crítica. Chico
Science criticou, morreu e deixou sua fama. Então, quem sabe no futuro
eu possa, assim como ele, fazer minha fama e morrer feliz.”
O primeiro contato do catador com a
reportagem foi na Rua Araripina, no último dia 8. O reencontro se deu
por acaso, cinco dias depois. Um clarão isolado chamava atenção na
deserta e mal iluminada Rua do Sossego. Na calçada, em meio ao lixo
remexido e bulindo numa fogueira improvisada para se aquecer, havia um
homem sem camisa. Era Amaro. Na madrugada anterior, tivera a carroça
roubada enquanto dormia. Perdeu o único patrimônio que conseguiu até
hoje, mas respondeu a mais um golpe da vida sorrindo.
Vivifica-me, ó SENHOR, por amor do teu nome; por amor da tua justiça, tira a minha alma da angústia. SALMO 143-11
Nenhum comentário:
Postar um comentário