“O Carandiru era o vale da sombra da morte”, diz sobrevivente do massacre
Sidney Sales relata que só ele carregou mais de 35
corpos, no dia 2 de outubro de 1992, e recorda o cotidiano naquele que
foi o maior presídio da América Latina
Jorge Américo e José Francisco Neto
de São Paulo
de São Paulo
Há
20 anos, o pavilhão 9 do maior presídio da América Latina foi invadido
pela tropa de choque da Polícia Militar. A ação foi comandada pelo
coronel da polícia militar Ubiratan Guimarães, após consentimento do
então governador Luiz Antônio Fleury e do ex-secretário de Segurança
Pública Pedro Franco de Campos.
Conhecido como
massacre do Carandiru, o episódio resultou, segundo a versão oficial
apresentada pelas autoridades da época, na morte de 111 detentos. Desde
então, apenas o coronel Ubiratan – falecido em 2006 – foi a julgamento,
sendo condenado a 632 anos de prisão em regime fechado.
Por
ser réu primário e ter endereço fixo, o coronel conseguiu recorrer da
sentença em liberdade, até a sentença ser anulada. Ironicamente, o
pavilhão 9 era específico para réus primários. Cerca de 80% das vítimas
do massacre esperavam por uma sentença definitiva. Ainda não haviam sido
condenadas pela justiça.
Depois de ter exercido
mandato de deputado estadual, Ubiratan foi encontrado morto em seu
apartamento. Apesar de contestada, à época, a suspeita de crime
passional foi aventada, envolvendo a sua namorada e advogada, Carla
Cepollina, que irá a julgamento no próximo dia 5 de novembro.
Sidney Sales, 45, é um dos poucos sobreviventes. Morador do município de Jundiaí (SP), ele relatou ao Brasil de Fato e à Radioagência NP
como foi o dia do massacre: “De repente eles falaram: ‘estão atirando!’
Eu falei que não, que eles estavam atirando com bala de borracha. Mas
daqui a pouco os outros me ligam e dizem que eles estavam executando
mesmo as pessoas. Eu subi na ventana (janela), e quando eu olhei já vi
vários cadáveres estirados no chão. Eu fiquei em pânico.”
Quando
questionado sobre o número de mortos, Sales vai direto ao ponto: “111
que tinham pai, mãe e advogado. Quem recorreu. Várias pessoas não tinham
família [...] Eu creio que aproximadamente morreram uns 250. Eu
distribuía alimentação no presídio. Naquele dia, sobraram quase duas
caixas de pão”.
Sales define o Carandiru como “o
vale da sombra da morte”. Cadeirante, hoje faz palestras em
universidades, igrejas e comunidades de baixa renda. Também trabalha com
dependentes químicos e acredita que as pessoas têm potencial para se
recuperar e viver dignamente. “Nós amamos pessoas que não querem ser
amadas. Nós colocamos sonhos nos corações dessas pessoas que nem sonhar
elas querem mais.”
Brasil de Fato e
Radioagência NP - O que vem na memória do senhor quando fala em
Carandiru. Quais as lembranças que o senhor tem daquela época do
cárcere?
Sidney Sales –
O pior momento da minha vida foi no Carandiru. O maior presídio da
América Latina. Principalmente o episódio do massacre do dia 2 de
outubro de 1992. Jamais será apagado da minha memória.
Como foi o impacto quando o senhor chegou no Carandiru? Como fez para sobreviver lá dentro?
Quando
eu cheguei, fiquei em pânico. Eu nunca tinha visto um presídio na
dimensão, extensão e quantidade de pessoas como era o Carandiru. Só no
pavilhão 9 tinha aproximadamente 2.500 pessoas. A sobrevivência é aquela
que você vale quanto você pesa. Se você cria uma condição de conviver
um pouco melhor, você vivia um pouco melhor. Se você não tivesse essas
condições, tinha que prestar serviço para outras pessoas: lavar manta,
vender algum objeto dentro do presídio [...] Fora o que era
contravenção: nota, faca, baralho [...] Mas você tinha que ter um meio
de sobrevivência. Conhecer alguém e ter um bom relacionamento com
algumas pessoas para ser transferido para outro pavilhão.
Como que era a convivência?
A
convivência era normal. Antigamente era dividido por setores: zona sul,
zona leste, zona norte e zona oeste. O pessoal do interior era chamado
de pé vermelho. A convivência era boa. Se você não tivesse dívida ou
falha no crime, se você não tivesse 'caguetado' ninguém, ou se tivesse
uma boa conduta e uma boa postura, era uma pessoa bem-vinda. Agora,
aquelas pessoas que eram de alto grau de periculosidade tinha uma
sobrevivência melhor do que todas.
A maioria dos presos do pavilhão 9 era primário?
O
pavilhão 9 era dos chamados cabeças de bagre. Os primários. Eram
pessoas que tinham passado pela primeira vez na Casa de Detenção.
Como foi o dia dois de outubro de 1992?
Eu
me encontrava no campo, jogando bola, pois era final de campeonato. De
repente, a gente ouviu aquele alvoroço no andar e quando nós subimos o
nosso time tinha sido campeão. Tinha começado aquele alvoroço do Barba e
do Coelho (dois ladrões considerados de alta periculosidade), pois
havia rivalidade entre os dois. De repente, uma quadrilha se confrontou
com a outra. Um ficou gravemente ferido e foi transferido pro pavilhão 4
(enfermagem) e o outro demorou para o agente penitenciário socorrer.
Tinha
uma gangue lá que começou a gritar “virou rebelião, virou rebelião!”.
De repente, todo mundo começou a se armar com estilete, faca, alguns
colocando capuz na cabeça […]. Aí eles começaram a gritar que a briga
era só entre os agentes penitenciários. Nisso os agentes ficaram em
pânico, evadiram o pavilhão que ficou a mercê dos detentos que ali se
encontravam. Uns começaram a por fogo em algumas oficinas, pois ali
tinha marcenaria, pregador e setor de fazer guarda-chuva.
Creio
eu que o fogo pegou na cozinha que era a copa, onde houve talvez a
explosão do gás P45. Nesse momento que o doutor Ismael Pedrosa, que era
diretor na ocasião, permitiu que o Choque invadisse. Só que o Choque
invadiu, no meu modo de dizer, de uma forma desumana. Se eles tivessem
cortado a luz e água ou se tivessem cortado a alimentação, obviamente
nós nos renderíamos.
Quando eu liguei o canal de
televisão, a primeira coisa que eu vi foi a Tropa de Choque. Quando eu
troquei o canal, o pelotão já havia invadido a Casa de Detenção e
algumas pessoas subiram até a minha cela, pois eu ficava no 5º andar,
era faxineiro.
De repente, eles falaram: “Estão
atirando!”. Eu falei que não, que eles estavam atirando com bala de
borracha. Mas daqui a pouco os outros me ligam e dizem que eles estavam
executando mesmo as pessoas. Eu subi na ventana (janela), e quando eu
olhei já vi vários cadáveres estirados no chão. Eu fiquei em pânico.
Uma
semana antes minha mãe havia trazido uma carta do salmo 91, pra quem
não sabe eu sou aquele menino do filme Carandiru. Eu entro pra cela e
começo a recitar aqueles versículos. Nessa hora, o policial chutou a
porta e mandou todos nós tirarmos a roupa e sair todos nus. Quando eu
saio da galeria, vejo quase 40 cadáveres estirados no chão. Alguns entre
a vida e a morte agonizando.
Os policiais
mandaram descer. Quando eu desço do 5º para o 4º andar, um policial
mascarado esfaqueou o rapaz com uma baioneta que estava na na ponta da
espingarda, deu mais alguns disparos, soltou o cachorro pastor alemão, o
cachorro catou e estrangulou o preso. O policial virou e falou: “Pula
negão”. Eu desci todos os andares e cheguei no primeiro. Todos tinham
que ficar com a cabeça entre as pernas.
Passaram-se
algumas horas e começou a chover. Os policiais mais os agentes
penitenciários começaram a catar algumas pessoas pra carregar os
cadáveres. Eu fui uma das pessoas escolhidas. Carreguei aproximadamente
uns 35. Depois um policial falou: “Aí negão, você e o outro aí sobem pra
catar outro cadáver”. Quando nós subimos, o rapaz que estava comigo
perguntou: “Caramba, nós já não carregamos todos os cadáveres?”. Eu
falei que talvez eles tivessem deixado embaixo de alguns escombros.
“Vamos rápido antes que os caras eliminem nós”, disse. Quando eu subi
pra catar o cadáver, vi que era o cara que estava ajudando a gente a
carregar os outros cadáveres. Porque agora quem estava ajudando a
carregar todos os cadáveres estava dando queima de arquivo.
Eu
percebi isso, subi pra galeria, pro 4º andar, cheguei e vi aquela poça
de sangue misturada com água. Não que eu tinha complexo pelo fato de
contrair o vírus HIV, pois já tinha tomado conta de pessoas em fase
terminal com vírus da Aids dentro da cadeia, mas meu medo era pisar no
sangue das pessoas que eu havia conhecido. Então eu subi para o 5º
andar. Quando eu cheguei lá me deparei com três policiais. Eles me
viram, apontaram a arma pra mim, uma calibre 12, uma escopeta, uma
metralhadora e duas automáticas. Falaram: “O que você está fazendo
aqui?”. Eu disse: “Meu senhor, eu ajudei a carregar os cadáveres lá
embaixo e o tenente mandou eu subir pra cá”. Nessa hora ele falou que ia
acontecer um milagre na minha vida. Ele estava com um molho de chaves
na mão, um ferro que tinha umas 50 chaves, e falou: “Olha moço, o
milagre que vai acontecer é o seguinte: eu não sei qual é a chave do
cadeado, mas a chave que eu pegar na mão e bater no cadeado eu vou
torcer. Se abrir, você entra, se eu não abrir, nós vamos te executar
agora”. Naquela hora eu me apeguei com Deus. Na hora que ele catou a
chave, colocou no cadeado e torceu, o cadeado abriu. Foi nessa hora que
eu entrei e ouvi a batida da porta nas minhas costas. Tinha umas 40
pessoas. Começamos a se revezar pra tomar um pouco de ar, pra não ficar
asfixiado ali naquela cela.
Pela madrugada um
detento escapou pela porta do guichê e começou a quebrar os cadeados das
outras celas. Nós começamos a nos amotinar de novo pra pedir a
reivindicação de juiz, promotor, pessoas que estavam com penas vencidas,
pessoas que já estavam passando de um terço de sua pena. Nesse momento
foi pedido para fazer uma comissão pra conversar com um juiz, assistente
social ou psicóloga. Quando nós formamos essa comissão pra conversar o
pelotão do choque invade de novo, pega os elementos de alta
periculosidade e transfere para algumas penitenciárias. Eu fui
transferido para Parelheiros. Fiquei dois dias. Fui para a Penitenciária
do Estado. Fiquei mais dois dias. Depois fui transferido para
Mirandópolis. Após sete anos privado, ganhei minha liberdade.
O número de 111 mortos corresponde com a realidade?
111
que tinham pai, mãe e advogado. Quem recorreu. Várias pessoas não
tinham família. As pessoas excluídas, consideradas como indigentes. Eu
creio que aproximadamente morreram uns 250. Eu distribuía alimentação no
presídio. Naquele dia sobraram quase duas caixas de pão.
Tem algum outro fato que ocorreu no pavilhão 9 que o senhor queira contar?
A
extorsão lá era complicada. Na parte de alimentação. Muita alimentação
era desviada. E no fundão do pavilhão 9 era a sobra do resto da comida.
Muitas vezes a alimentação era negociada. Com três maços de cigarros
você comia dez bifes. A sobrevivência era precária pra quem não tinha
condições.
O que significa hoje para o senhor ser um sobrevivente do massacre?
Eu
sou vítima do Estado. Pelo fato da ausência do Estado na minha
periferia, na minha escola, na minha instrução foi que eu me tornei um
marginal. Só que esse marginal foi jogado num depósito, onde era a Casa
de Detenção. O maior presídio da América Latina, onde a única pessoa que
se lembrava de você, era a sua mãe. O Carandiru pra mim era um
depósito. Uma coisa que ficará gravada na mente de qualquer pessoa que
passou naquele lugar. Ali eu considerava como Auschwitz. Há muitas
histórias que aconteceram que não podem ser contadas. Eu defino o
Carandiru como o vale da sombra da morte. Um local que você dormia num
dia e não sabia se levantaria no outro.
As pessoas que se envolvem hoje no crime também continuam sendo vítimas do Estado, em sua opinião?
Com
certeza. O filho de uma pessoa que tem o poder aquisitivo vai para a
escola no berçário. Com 1 ou 2 anos, ele já está falando “What´s your
name?”. Já está contando de um a dez em japonês. Enquanto o filho do
pobre vai para escola na primeira série aprender o que é vogal. Quando
vai fazer um curso para prestar um vestibular para entrar na
universidade, ela é então ocupada pela pessoa que tem o poder
aquisitivo. Quem vem da periferia não tem a possibilidade de cursar uma
universidade, na maioria das vezes. Se o pobre não tiver a ousadia de
ser um pagodeiro ou um bom jogador de futebol, vai se tornar outro
Marcola.
O sistema carcerário recupera alguém?
O
sistema carcerário é o maior produtor de marginal na América Latina.
Você entra roubando pequenas coisas e sai assaltante de banco. O
presídio não recupera ninguém.
O que o senhor faz hoje?
Hoje
eu tenho três casas de recuperação, com mais de 110 pessoas e uma
fazenda em que eu abrigo 150. Hoje eu trato drogado, alcoólatra e
morador de rua. Há nove anos, faço um trabalho dentro da Cracolândia
tirando morador de rua e drogado do centro de São Paulo. Nós amamos
pessoas que não querem ser amadas. Nós colocamos sonhos nos corações
dessas pessoas que nem sonhar elas querem mais. Devido às crises
existenciais em que vivem, principalmente dessa ausência do Estado.
TODA A INIQUIDADE É PECADO , E HÁ PECADO QUE NÃO É PARA MORTE. 1João 5/17
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